TEM DIAS
Tem dias em que o acordar é translúcido e toldado de
memórias doentias.
O lençol da deceção está tão porco que nem as lágrimas
suadas lhe tiram as nódoas.
Um cansaço vespertino que ferve à procura de pontos de luz
para onde a atenção possa ser desviada.
Incrédulos os pedaços da pele a tentarem voltar a
aconchegar-se na própria identidade.
Alma retorta na repugnância invasora que impregna o corpo, como
se entrasse pelos poros e se alojasse em todo o cérebro, depois de sujar cada
pedaço de pelo, de musculo e de osso.
Não há banho de lixívia remova este nojo.
As astúcias dum satanás brincam com fantasmas desenterrados
à força e cultivam sombras, dando colo a medos pestilentos que farejam a
náusea.
Uma desconcertante rede que pesca as agruras e solta angústia
para ser caçada num anzol.
Só a raiva, mesmo quando presa na impotência, espicaça uma
revolta, que serve de alavanca para a coragem num moldar do pensamento.
Mola de atitude contra o negrume, na ativação de sonhos
renovados que já não querem voltar para a cama antes da noite.
Sim, porque também há dias em que os pesadelos do dia são
tão mais absurdos e medonhos que criam uma vontade de sono compulsivo, único
assassino dos terrores da vida real.
texto de Mirandulina
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