Dentro de um café em semicírculo,
esquinado entre duas ruas e todo vidraça, o dia escurece de pingos grossos e
entardece-lhe a idade, como um aquário onde os peixes, todos fora de água, se
convencem que respiram.
Rolam, pelas encostas dos vidros,
migalhas de águas, num pranto que dá dó, mas só por fora, porque por dentro
riem-se, como eu com um esgar cínico, do temporal. Nos passeios a chuva
lança-se e canta soando a pedregulhos que descaem de um abismo, acumulando-se
em poças e nos sapatos, tornando o dia tão pesado, como uma cana de pesca
carregada de chumbos a puxar a linha para o fundo do mar.
Através do embaciado, as árvores quase
despojadas de folhas, exibem só umas sobreviventes amarelecidas a brilhar de
gotículas pingantes. Algumas manifestam verdura incomodada, abanando a sua
decoração encharcada e perene, sacudindo as cabeças crispadas pelas ondulações
do vento.
Lá fora a fugacidade descolorida
que fecha rostos é esborratada por vultos rápidos, firmemente pendurados em
guarda-chuvas, escolhidos com a sobriedade invernosa, sem pinta de graça. Não
se percebe se as pessoas que circulam, fogem da molha, do frio cinza, da
multidão do granito escurecido do pavimento e dos edifícios centenários, ou de
si mesmos, procurando refúgios concretos ou imaginários, onde o conforto lhes
dará um sensível agrado, apaziguador
apesar de temporário e aparente. Devem ter objetivos específicos e relógios
para obedecer, tal a determinação dos seus movimentos.
Creio que o vento se irritou agora mesmo, com esta avidez
de pressa e pôs tudo a bulir com verdadeira agitação. Vergam árvores e
guarda-chuvas, voam folhas, lixos descuidados e abrem-se em asa os casacos,
dando a sensação que estou rodeada de vampiros.
Não sei bem que horas são. Não
tenho a certeza, em que dia vivo e tenho dúvidas se é outono invernoso, ou já
inverno. Tudo indica que o dia se despede e promete voltar igual amanhã,
indiferente às minhas caretas desoladas.
Uma fonte compete com este
dilúvio e parece nem existir para ninguém de passagem. Quem é que precisa de
uma fonte jorrante em desperdício nas tardes aquosas e gélidas? Paradoxo,
quando comparado com tantos locais onde a falta de água mata. Talvez a fonte se
sentisse cheia de vaidade se brotasse raios de luz a iluminar a neblina amorfa que
a envolve ou talvez sonhe com países longínquos onde vitalizasse as secas
persistentes com a sua utilidade. Poderia abrir bocas e sorrisos salva-vidas.
Devem ter ligado um aquecedor ou
o café encheu-se do ar quente da gente que o invadiu, enquanto eu olhava pelos
vidros como se fossem uns óculos gigantes que de repente se embaciaram. Aqui
dentro vive-se temperaturas tropicais e não falta água para matar a sede. Que
bem que se está! Palpita-me que deve ser tempo de ir jantar. Terei que
acomodar-me ao guarda-chuva e vagabundear, colada aos vultos brumosos da rua,
até casa. Irei devagar para não entrar no jogo. Não. Nem pensar! Lá terei que
me juntar à pressa deles na ansia de ir sonhar sofregamente com outros calores
incubada no sofá. É como quando se diz uma coisa e se pensa outra, com cara de
santo e imo diabólico. Enfim…nem os vidros conseguem manter a transparência, ser
iguais por dentro e por fora, porque me ralo eu?
TEXTO DE Mirandulina
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