sexta-feira, 19 de julho de 2013

DENTRO DE UM CAFÉ

DENTRO DE UM CAFÉ

Dentro de um café em semicírculo, esquinado entre duas ruas e todo vidraça, o dia escurece de pingos grossos e entardece-lhe a idade, como um aquário onde os peixes, todos fora de água, se convencem que respiram.

Rolam, pelas encostas dos vidros, migalhas de águas, num pranto que dá dó, mas só por fora, porque por dentro riem-se, como eu com um esgar cínico, do temporal. Nos passeios a chuva lança-se e canta soando a pedregulhos que descaem de um abismo, acumulando-se em poças e nos sapatos, tornando o dia tão pesado, como uma cana de pesca carregada de chumbos a puxar a linha para o fundo do mar.

Através do embaciado, as árvores quase despojadas de folhas, exibem só umas sobreviventes amarelecidas a brilhar de gotículas pingantes. Algumas manifestam verdura incomodada, abanando a sua decoração encharcada e perene, sacudindo as cabeças crispadas pelas ondulações do vento.

Lá fora a fugacidade descolorida que fecha rostos é esborratada por vultos rápidos, firmemente pendurados em guarda-chuvas, escolhidos com a sobriedade invernosa, sem pinta de graça. Não se percebe se as pessoas que circulam, fogem da molha, do frio cinza, da multidão do granito escurecido do pavimento e dos edifícios centenários, ou de si mesmos, procurando refúgios concretos ou imaginários, onde o conforto lhes dará  um sensível agrado, apaziguador apesar de temporário e aparente. Devem ter objetivos específicos e relógios para obedecer, tal a determinação dos seus movimentos.

Creio que o vento se irritou agora mesmo, com esta avidez de pressa e pôs tudo a bulir com verdadeira agitação. Vergam árvores e guarda-chuvas, voam folhas, lixos descuidados e abrem-se em asa os casacos, dando a sensação que estou rodeada de vampiros.

Não sei bem que horas são. Não tenho a certeza, em que dia vivo e tenho dúvidas se é outono invernoso, ou já inverno. Tudo indica que o dia se despede e promete voltar igual amanhã, indiferente às minhas caretas desoladas.

Uma fonte compete com este dilúvio e parece nem existir para ninguém de passagem. Quem é que precisa de uma fonte jorrante em desperdício nas tardes aquosas e gélidas? Paradoxo, quando comparado com tantos locais onde a falta de água mata. Talvez a fonte se sentisse cheia de vaidade se brotasse raios de luz a iluminar a neblina amorfa que a envolve ou talvez sonhe com países longínquos onde vitalizasse as secas persistentes com a sua utilidade. Poderia abrir bocas e sorrisos salva-vidas.

Devem ter ligado um aquecedor ou o café encheu-se do ar quente da gente que o invadiu, enquanto eu olhava pelos vidros como se fossem uns óculos gigantes que de repente se embaciaram. Aqui dentro vive-se temperaturas tropicais e não falta água para matar a sede. Que bem que se está! Palpita-me que deve ser tempo de ir jantar. Terei que acomodar-me ao guarda-chuva e vagabundear, colada aos vultos brumosos da rua, até casa. Irei devagar para não entrar no jogo. Não. Nem pensar! Lá terei que me juntar à pressa deles na ansia de ir sonhar sofregamente com outros calores incubada no sofá. É como quando se diz uma coisa e se pensa outra, com cara de santo e imo diabólico. Enfim…nem os vidros conseguem manter a transparência, ser iguais por dentro e por fora, porque me ralo eu?
TEXTO DE Mirandulina

Sem comentários:

Enviar um comentário