sexta-feira, 19 de julho de 2013


NA VERTIGEM URBANA

 

Era uma vez, uma viagem em balão, como a do livro de Júlio Verne, só que já lá vão muitos mais do que oitenta dias. Decorreram muitos anos desde que o ser humano iniciou a sua própria demolição.

Não. Num balão vê-se o mundo de cima e por isso, as coisas, não ameaçam querer cair a todo o instante em cima de nós. Não, não é esse o caso.

 


Era uma vez, uma viagem de avião, daqueles de grande porte, que apesar de toda a tecnologia, estão sem suporte no ar, oscilam, tremem e descem ou sobem, a planar aparentemente. Esta, talvez pudesse ser uma boa imagem, se não houvesse a característica, comum ao balão, de ver o mundo de cima e não de baixo como as formigas, com a agravante de que pairam poeticamente sobre as nuvens, e, naquilo de que quero falar dificilmente entra poesia dessa com borboletas esvoaçantes, sol cálido ou passarinhos a fazerem os ninhos. É mais como a trágico-comédia ou sátira do absurdo quotidiano.

 

Era uma vez… Havia um marinheiro que vivia no alto-mar e que por tal, para ele o desequilíbrio, passara a ser a constante do seu estado.

Até podia ser. Mas não é bem isso.

O dito, marinheiro, depois de muito vomitar e temer a ausência de terra firme, habituou-se ao constante bamboleio do barco, e, somente fica assustado nos dias de tempestade.

Não. Nesta situação que quero descrever, até existe algo de habituação, mas o enjoo e o medo, são teimosos.

 

Então, como dizer que se flutua com os pés em terra firme?

 

Tudo em redor é inconsistente.

Objetos quase fantasma.

O mundo parece virtual, desmaterializado.

Pura física quântica?

Como um artista-plástico, que besunta as telas com tinta, como se decalcasse esboços pré-desenhados, surgem teimosamente figuras flutuantes, tantas vezes translúcidas.

O olhar transformado no deambular, quase distante, bailado, mantém um ponto de mira incerto, mal calibrado.

Desfile frágil. Atropelos. Atropelam-se pessoas e todos os obstáculos. O mérito está na agilidade.

 


A jornada urbana é encetada em estratégia cautelosa.

Aventura fora de portas, delineada sem porto de abrigo ou guarda-costas.

Caminhar apressado em sinuosos percursos.

 

Apenas numa palavra cabe tudo o que aqui exponho: vertigem.

Sim, porque se trata de uma exposição. Como aquelas em que se colocam as obras nuamente, sujeitas à crítica de quem as absorve.

 

Oscila a mente e faz com que as coisas bambeiem.

Tudo se equalizando neste cinzento-névoa esborrachado nas entranhas dos olhos. Não se pode distinguir se é da multidão amassada ou da ansiedade da pressa.

Um sorriso amarelecido pelo conformismo apresenta-se para um resgate em tentativas de slow down.

As imagens estranham-se das formas e dançam nas luzes das noites.

Emoções insuportavelmente silentes, tantas vezes agónicas, no pulsar ruido citadino.

Os passos cadenciam-se a ritmo inconstante muito próprio do acrobata que se desloca, bamboleante, sobre a rede.

Equilibrista de braços afastados do tronco a percorrer o arame.

A surpresa inicial é substituída por alguma rotina disciplinada e medidas de adequação.

Adaptações a uma nova forma de viver?

Hábitos treinados como defesa, mas os hábitos não fazem os monges, e, muito menos, acomodação ou simples aceitação.

O mais inoperante é estacionar a fobia. Ficar estanque ao medo.

 

Já não se sabe pular, nem trepar árvores, nem dar cambalhotas, nem rebolar no chão. Destino: correr, andar num baloiço de plástico.

Eterno de carrocel.

Rebolar-se lambendo terra, arrancando erva com a boca é coisa que qualquer adulto que se preze, jamais quer deixar de poder fazer, ainda que nunca o faça, pelo menos, por puro divertimento, como acontecia na infância.

Ou terá sido, na antiguidade?

Quais as crianças inteligentes e sadias que correm com a lógica de fugir da chuva?!

A lógica não devia subir mais que das unhas dos pés?

O que aborrece é ter que fazer algumas coisas, ditas importantes, convencionadas, como avançar uma poça de água para não molhar os pés.

Que piada tem a vida se não se puder saltar de chofre para um charco e estragar os sapatos acabados de estrear?

 

Eloquências auditivas enervantes enchem os neurónios.

Tudo é porta-voz de rugidos pré-fabricados. Uma grande cidade é Babilónia temível.

Eram apenas sonoridades, mas todas as paredes, se sempre tiveram ouvidos, agora, também ecoam vozes de besouros gigantes.

O estado entre o pesadelo e a loucura, faz com que os interlocutores obstinem cenhos franzidos pelo esforço e os mais avisados esbocem cansaço, devido à intolerância.

Os rostos são fotocópias numa expressão de desalento impaciente.

Chegar a casa. A casa, um ovo protetor. Chegar a casa, resguardo das agressões externas como único e disforme pensamento a latejar nas têmporas.

Em certos momentos a verborreia alucina os que se auto-ouvem na ausência do diálogo. Outros, nem a si próprios consentem, ouvir-se.

 

Troar de batidas do coração ou do ronco arfado do pânico, desaguam na cadência plácida dos ansiolíticos.

Ecos, ecos, ecos, no meio da multidão, como se um ruidoso sol amassasse o cérebro, com intolerante neurose de óculos escuros nos espaços menos luminosos.

Com os olhos, rios húmidos sem correntes, enegrecidos pelo esgotamento e atropelados pelas ideias, imagina-se de que cor se pinta o tormento do tráfego e zunidos provocadores violadores do espaço craniano.  

Raiva é amarfanhada em locais a abarrotar de silêncio envolvente, onde a serenidade pode apenas raiar. Conseguir desligar dos ruídos e azedumes, por momentos, mesmo que, com pretextos banais, torna-se uma necessidade.

Paradoxo: o incómodo dos pensamentos-ruído que não largam os miolos.

Som do bulício citadino, próximo, sem poder ser abafado pela ausência da vegetação, ecoa nos muros e nos prédios berrantes de modernidade ou de paredes tão antigas como espessas.

O desencontro com a paz.

Prisão incondicional.

A mente inquieta num corpo agitado em hiperatividade inútil, vezes demais, angustiadamente apático de desmotivação e hipoatividade provocada pela insegurança.

 

Indisposição indefinida. Espasmódica. Aturdimento? Cabeça cheia? Cabeça vazia? Medo das ressonâncias interiores e exteriores, da náusea, do fastio, da tontura, do desequilíbrio, das quedas em fossas de desespero.

Arriscar no fator sorte, como única solução.

Nos reclames luminosos, as letras constroem um bordado de arabescos que não se deixam ler e que o tédio nem quer ler.

Num automóvel, de autocarro ou de metro, é sempre uma aventura tão pouco entusiasmada como enervante

O percorrer do horizonte, será sempre uma viagem desejada, de magnífico alongar do olhar sem impedimentos.

Caminhada das gentes em ponto de cruz, fora de qualquer linha reta, num ziguezague embaraçador, absorto, distraído do rumo.

Egocêntricos que, de olhar periférico, fazem a sua rota sem convicção.

Características que não andam muito distantes das pessoas com autismo, com a diferença essencial de que, ao que consta, aquelas autoestimulam a sensação de vertigem e não a temem.

Os auscultadores onde os decibéis vibram, isolam, e neste mundo são as armas de defesa de vanguarda.

Rotina. Caminhos diversos para chegar ao mesmo destino, mas estudar bem as rotas da autonomia e quando conhecidas obstinar em não sair delas.

Ruas que ganharam contornos de inimizade.

Kit mãos-livres. Braços em prontidão para qualquer eventualidade. Homens-polvo interativo, com a agressividade em riste.

Expressões de fácies, ora de Mona Lisa, ora de Madalena arrependida, ora de um qualquer pitosga de olhos perdidos em minúsculas.

A diferença é que vêm, mas não olham, não sabem de que devem arrepender-se e têm a mona pouco lisa. Crescem papos de faz de conta, forçados pelas turbinas da cabeça.

A sensação de voar em asa-delta, é permanente.  

A verdade é que ninguém consegue ter os pés totalmente assentes no chão quando usa sapatos que também conseguem moldar as rotas dos sonhos.

Será normal? - “sim, sou muito louco…não me vou curar…mais louco é quem o diz e não é feliz”, canta o Ney Matogrosso.

Normal?

Que é isso, senão um dado estatístico de referência útil?!

A viagem cumpre, pressionada pela esperança, as medidas agridoces da compaixão.

Encarnar da cobaia em novo experimento anti exclusão.

Continuação da catarse para não sucumbir.

A pista está cheia de obstáculos aos objetivos.

Na matriz pautada por pretensa coerência flexível, não se conseguem arrumar todos os espaços em aberto e mal resolvidos.

Pensamentos a boiar sobre rolhas de álcool em águas de esgoto ou folhas cujos rabiscos foram apagados com uma borracha e deste modo mal se definem.

Primar pela teimosia resistente ou pensar no branco. Pensar em nada. Vazio. Onde não há nada, não há incómodos nem dores.

As dores do mundo. Agonia constante qual zumbido repetitivo e insolúvel. Uma tristeza com as medidas do infinito. O desistir em eminência. Avestruz!

Dormir. Dopagem, como único apaziguamento de umas horas. Fumar no ocupar das mãos. Ócios de intoxicação. Quem disse que a lógica impera!?

Viver ao sabor da vertigem. Isto não é uma figura de estilo literário, é antes, a uma realidade do quotidiano.

Tentar sobreviver, dá noção de autoeficácia e por tal de autoestima. Apurar da resiliência que por vezes falha.

Procurar desvalorizar os sintomas da náusea universal e indizível. Na sofreguidão do belo, o antídoto.

Se a cabeça fosse uma caixa de música, dava-se corda tão só quando se pretendesse ouvi-la e tocaria apenas alguns minutos.

Vidrado encantamento, no dar corda para um ouvir condicionado pelo cronómetro de uma caixa de música.

Uma daquelas bolas, tão pirosas com deliciosas, onde, quando agitadas, flutuam imitações de flocos de neve, e apoiada numa base, igualmente encantadora e  inestética, de onde pode emanar uma valsinha ridícula.

Sugar este som com algum consolo.

 

A gravidade de um tamanho abissal encharca tudo e chega a cheirar a pântano.

Passam-se vidas na espera de olhar estrelado.

Afastar do peso entranhado, na dinâmica de felino com equilíbrio invejável.

Porém, o peso, sempre a gravitar.

O néctar duma chuva tépida sobre os fumos ou uma brisa morna, cheiram a ungento anti stress. As tempestades diluvianas, guardadas nas memórias ancestrais, fazem absorver como uma esponja, doses de energia tsunâmica.

Os ecos que se ouvem, são resíduos de vivências musicadas quase esborratadas e deturpadas pelo tempo.

A cidade ouve ressonâncias da própria voz, no seu sistema de som avariado, onde se perdeu a estereofonia com múltiplas interferências urbanas.

Apenas espaço feito necrose. Torto. Distorcido. Pelo menos a mente, deve seguir caminhos tortuosos, daí o desequilíbrio.

Pessoas-caracol. Recolhimento na concha a cada aviso de perigo eminente.

Indecisão. A semelhança, será maior, com o louva-a-deus, temente de quebrar as pernas delgadas que suportam o volume do corpo, naquele balançar para a frente e para trás, como quem se arrepende a cada passo que dá.

Ao cair das tardes, o refugiar do cansaço em paisagens preferencialmente desérticas, por vezes criadas, não mais que, na imaginação.

Olhar para dentro. Escutar-se. Fugir do próprio corpo, como se este fosse um uniforme vistoso e incomodativo. Algo exterior a si. Um esquema corporal adulterado. Invólucro coersivo, castrador do fluir da atividade com espaço e com tempo.

Imaginar o que sentem as bestas quando são carregadas com fardos de pertences que não lhes pertencem. Os animais e também os homens-escravos do mundo.

 

Talvez por isso e pelo quase calar do intimismo, se consegue um abraço apertado ao dia e alienar tudo num riso, necessário como um arroto, sorrindo ao discurso interno, falado em surdina enquanto se tateia entre os vultos compactos.

O silêncio encolhido no seio de um quarteirão da urbe, transmuta o deslocar, que perde a segurança neste lugar, e depois, já não é possível num qualquer outro, nem mesmo dentro de casa, pelo hábito.

Há quase sempre um coxim de sedas, que protege e salva das quedas sem aviso. Os cúmplices. O sonho. Estado de vigília em que a memória funciona como durante o sono, esquecendo parte do que sonhou.

Ficar com a vista esquecida num átomo do mundo, sem pensar em nada digno de ser recordado. A sensação de alívio de uma sesta tranquila.

Nenhum sinal de mau tempo a impedir de usufruir deste espaço mágico, onde a agitação também se dilui. Os alarmes e as buzinas perdem terreno no alheamento. Só a mediocridade inibe este grande privilégio.

Encubar num reflexo de defesa animal.

Desenhar uma cortina de fumo de trama negra, cheia de incógnitas.

Barquitos à deriva que com tantos sinais e tantos faróis não descortinam nenhuma hipótese operativa.

Super-heróis batalham com as sirenes e os exaustores que guincham corrosiva e permanentemente nos seus ouvidos.

Enfrentam estoicamente o tráfico citadino.

Sempre a esboçar fáceis sorrisos, à laia de desculpa, pelo embaraço da existência trôpega. Esforços caricatos de sobriedade. Recurso muitas vezes evitável.

Agarrar os peões, jamais!... para não os assustar com o tato.

Que pecado não tocar o desconhecido!

 

Os passos que pisam atrás das sombras são semáforos fundidos. Há que abrandar, a pontos de parar a marcha, para permitir a ultrapassagem sem acidente por atropelo.

Pequenos e supostos radicalismos urbano-depressivos.

Nestes dias de vertigem, sair de casa é um ato radical.

Automóveis. Um luxo que desfila na atualidade e convenhamos que é um vício tão difícil de largar como qualquer outro.

Perigo real no aturdimento constante de descair. Como aquela perceção errada, ao viajar de comboio, de que são os elementos da paisagem exterior, que estão a andar.

 

Sonhos colocado na prateleira dos arquivos mortos, talvez utopia. Mesmo assim, a alegria pendura-se aos sobreviventes, torneando o desconsolo com o prazer.

Depois, morrer de agastamento entre sorrisos atirados para o ar.

Sem sacrifício. Coisa de raros momentos de ausência de sadomasoquismo.

Um grito de timbre forte ou prosseguir em estado de cama. A mosca quando lhe põem inseticida, cairá estonteada pelo prazer?

Terapia de relaxamento. Sempre morna de música cinzenta, monótona, mono tónica, quem sabe irónica, da mesma maneira que irrita uma voz, monocórdica, que quase nunca se desnuda, face a uma discussão.

Apesar disso, para alguns, o ensaiar deste último tipo de expectativa é benfazeja como uma prescrição médica.

Que seca! Qual relaxamento!? Frustração, sim! Uma sombra na sombra. Quase que outro ser.

 

Voltando aos óculos de sol. Esconderijo de traiçoeiras olheiras da insónia e dos temores que afastam o sono, numa salvação mascarada daquela péssima autoestima que, nestes agoras, prevalece.

Um sem número de vezes, fechar os olhos, é um ato temido, apesar dos antidepressivos de recurso, contra a queda em banho de imersão em pesadelos.

Pormenores ridículos mas que viraram o dia a dia, do avesso.

A insegurança, a ansiedade, o pânico são os familiares mais próximos disponíveis.

Sem raízes. Literalmente. Viver em cerca de uma dúzia de cidades, faz parte do currículo.

Por opção, por curiosidade. Porque a rotina altera emocionalmente tanto, como as mudanças perturbam.

Treino no dizer adeus. Desvinculação padronizada. Privar de afetos contagiosos.

Pronto! Já cá faltava a canção do desgraçadinho!

Qual drama qual carapuça! Porém não se livram de slogans, porque a educação pode ser rígida, com barreiras intransponíveis a grande parte dos ideais, ou apenas, a algumas ilusões, entusiasmos.

 

Autoestrada livre. Atenção! Atenção! Socorro! – ninguém repara, há mais que fazer.

Por estranho que pareça como não havia obstáculo para apoio, deu-se o despiste! É a falta de treino para vagabundear em espaços abertos.

Caminhada invadida por cálculos e pontaria de obstáculo a obstáculo, o que quer dizer, que entre um carro do lado esquerdo e um poste mais à frente se encontra um vazio de muletas.

Um carro estacionado tornou-se um precioso ponto de mira e ponto de apoio, uma ajuda indispensável ao serpentear por um passeio, entre as paredes das casas e a berma (um verdadeiro precipício!)

 

A fartura de amizades esvai-se no tempo e na indisponibilidade.

Subtraem-se preciosamente nas pontas dos dedos, procurando segurá-las com laços azul índigo. São, pelo menos, vozes de cumplicidades, ecoam e são imensas.

Quando as crises de pânico não espreitam, sempre que os mares estão mais calmos, o embevecer soa a música, ritmando passos que qualquer vertigem achará atrevidos.

 

Subir um cavalo e galopar por uns minutos de exultação! Um enorme esforço de fazer o inesperado numa situação de demolição.

Infelizmente aprende-se, sem aconchego e de  modo imoral, não tanto, pelo que calhou bem, mas por aquilo em que se errou.

A falta de formalismo, aquele misto de poeta com laivos de pseudoartista, só é eventualmente, perdoada tendo como moeda de troca, o empenho e alma apostada.

Incomodar com uma frontalidade pouco cautelosa, é confrontação necessária à preservação da espécie.

Inominável capacidade de desconstrução da arte, onde caem todos os desabafos.

 

Fantástico privilégio de, depois de muitas revezes da vida, e, vários agoiros se poder escolher a profissão para a qual, alguma pessoa se sente realmente vocacionada. Esta palavra existe no dicionário, mas nem toda a gente, tem a sorte de poder usá-la.

Apenas, poucos a podem usar. Para muitos, viver é fazer umas lecas, alguns continuam por descobrir a sua finalidade e a maioria acredita na salvação pós-morte.

Qualquer que seja o trabalho que se arranje, deve ser exercido com profissionalismo, não!? Se for ensacar batatas, isso terá que ser executado com toda a nossa perícia. Ninguém tem culpa de que outrem esteja na profissão errada, seja lá pela razão que seja! Se não é vocação, não é! Tem que ser é profissionalismo!

Fazer da forma que melhor se consegue. Assim rezam os cardápios.

Vocação? E se for puro egocentrismo? Escolhe-se uma profissão humanitária e passa-se eternidades a ouvir-se o que se quer ouvir. Dizem que se é extraordinário, por fazer algo que outros acham não serem capazes de desempenhar e o ego, ufana!

Por outra parte, no caso de outros, ainda a coisa fica mais dúbia porque a compensação socio-afetiva recebida preenche numerosas lacunas.

Vale para quase tudo? O mais árduo é não se mentir a si mesmo.

Para isso, era preciso que um autoconhecimento na íntegra, mas é aí que reside o enigma humano. Nunca alcança a essência. Por tal, há sempre uma desculpa para a autoilusão e ainda mais facilmente enganar os outros. Pese embora a construção do eu depender da existência do outro, diz-se.

 

Calar e consentir? Coerência, não significa nunca mudar de opinião, mas talvez, dar a cara a todas essas ambivalências que caracterizam o ser humano. Se fosse na pintura seria, não usar velaturas.

Acreditar, convicção sem peias. Em…?

 

A vertigem na urbe é tal que tanto cria latidos de revolta como aquelas vozes monocórdicas que não sabem gritar. Educadas.

Treinadas. A precisarem de dar uns uivos à laia de desabafo. Assim, podem ser como uma panela de pressão a que se esqueceram de tirar a tampa, ou como aquela sensação, que também sufoca constantemente, de tampão nos ouvidos. Sensação comum à maioria dos mortais, momentaneamente, quando mudam de altitude.

Ora se tenta dar oportunidade ao calar da voz e dos pensamentos, ora ao contrário se pavoneia uma sabedoria, que só serve a vaidade de cada um.

Falar ao mesmo tempo que pensar, isto é, antes de pensar no que ou deve dizer-se, verifica-se quase sem oportunidade.

É PRECISO SER RÁPIDO, OU PERDE-SE A VEZ.

Verborreia. Evidentemente, nestas alturas, a par da grata espontaneidade, a insignificância assenta como uma luva.

Satirizar pavlovianamente. O treino da independência aparente e defender aquilo em que acredita.

Ora, isso da independência, no que respeita à autonomia, desde há uns anos, está comprometido exalando bafos de invalidez. Uma charada de dependência mútua.

Liberdade fustigada, ora por ventos de intempérie, ora por leve brisa com aroma de maresia, sempre a tentar manter-se presa ao chão, ao invés de voar.

O arrastar por subterrâneos do prazer indispensável.

Investimento em fonte segura, tal o dispêndio de energia que exige a palavra felicidade. Tensão das relações e exigências sociais comuns desgastam até às entranhas da mágoa.

 

Parar. Tentar o autoexame. Vasculhar e descobrir o paradeiro dos mais pequeninos sonhos.

Atónita escuridão, a incapacidade total para os reencontrar de tão entrapados e sumidos que estão, no tem que ser e no esgotamento.

Opiniões divergentes. Conselhos primorosos.

Extenuar incapaz para raciocinar, lançamento numa derrota abrupta.

Os heróis, na sua maioria, morrem com glória póstuma. Os derrotados, entregam-se e salvam a pele. Lúgubre, mas um facto, um fato tingido de pardo cobardia.

Parar como medida paliativa.

 

A intuição faz acenos com a mão, sugerindo um colchão com o lençol opaco da espera.

Impotência perante qualquer atividade ou ócio. Comer pão seco colocado estrategicamente, perto do sofá, só para não haver o incómodo de lhe ir colocar a manteiga. Nem ler. Nem ver televisão, nem computador, nem ouvir música. Nada.

Só cansaço e sono induzido, repleto de insónia, albergue de sonhos terrificantes frequentes.

 

Agora morre-se e nasce-se todos os dias, construindo maquetas de novos e afáveis momentos de consolo.

Incrível restauro dos dias de tréguas, os prémios breves que são os momentos de alegria, quando esmorecem as ideias confusas.

Perscrutando desejos antigos um tanto bolorentos, mas, ainda não descartáveis.

Emerge a leveza, em algumas horas, no apaziguamento das emoções.

Sem grande convicção, revive, onde garatujas de ideias soltas se escrevem com o esforço de quem desenha as primeiras letras.

A promessa de abertura para deixar o círculo umbilical.

Ressuscitação efémera quando uma primavera autoriza o cansaço a prestar provas.

Há pessoas que a partir de determinada fase da sua vida assumem que não têm que provar nada a ninguém, a não ser a elas próprias, se, se derem a este magnânime trabalho de aprumo, sem usar de autocomiseração.

É uma espécie de birra que vai crescendo com a idade, contra tudo o que foram obrigadas ou induzidas a cumprir a pouco gosto.

 

A palavra educar foi inventada para inibir os impulsos naturais. Um pacto social exigido para controlar a fera que existe em nós, e, por outro lado, uma castrante forma do potencial genuíno que cada um tem.

Se há coisa que se beneficie ao contactar com pessoas de diversas culturas, é o facto de se aprender a dispensar, um sem número de salamaleques e mesquinhices geradas pela futilidade de alguma da etiqueta sociocultural.

Há normas essenciais para a vida em comum, para controlar o nosso natural egoísmo.

A solidariedade devia ser uma das primeiras da lista que, pelo estado do mundo, se pode ver que tem sido muito mal aprendida ou ensinada.

Teoricamente insustentável? As filosofias valem o que valem para quem as escreveu.

 

Brotam pensamentos, que emaranham as emoções, não raro, coloridas de sarcasmo e não azedume.

A curiosidade estimilada pela publicidade, puxa para um sem número de assuntos que não servem de conversa com ninguém, de tão estúpidos, insignificantes que, na sua maioria, são.

Aleatória concentração em pormenores, que não lembram ao mais pintado.

Já não há pachorra para dissertar coloquialmente, seja sobre o que for.

Ecofobia sempre eminente. Desorientação generalizada.

Rodar 90 graus. Ajuste da direção. Agora é mais difícil. Rodar 180º.

Com a sensação de vertigem que estes movimentos dão, é prioritário, não tentar fechar os olhos, como a experiência diz, porque é bem provável o desequilibrar e o perder do rumo, mais prontamente.

De onde se vem, afinal? O que se quer?

 

Se pode ser verdade que a curiosidade mata, também, é obvio, que vai morrendo com o tempo, de morte lenta, eutanásica.

Interlúdios de vida, um não quer saber de nada. Há dias em que o saber ocupa tanto lugar que só resta espaço para a indiferença.

A vida  em stand by da crisálida no casulo a aguardar o nascer tardio das asas.

Depois renascer, sentar-se ao lado da infância e não sair da idade dos porquês.

 

texto de Mirandulina

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